O Velório de Zezé (por mim mesmo)
Zezé era uma amiga que primeiramente fora uma paciente. Conheci Maria José enquanto trabalhei no Hospital de Crisópolis no ano de 2004. No tempo em que andava de motocicleta, nem possuía carro. Engraçado que com Zezé veio a amizade da família inteira que me respeita, admira, de certa forma venera e crê em mim. Também pudera, quando tive a oportunidade de ser seu médico fora porque Zezé, possuidora de uma grande deformidade na cabeça às custas da neurofibromatose (doença rara que causa um certo terror), havia sofrido um pequeno acidente doméstico e lesado uma de suas proeminências neurofibramotosas da face. Agente passou trinta dias convivendo com Zezé e sua família no hospital. Por causa dela conheci Dona Lindaura, sua mãe, pessoa maravilhosa boníssima a quem tenho muito apreço. Também conheci seu pai, Sr. Raimundo que faleceu há 20 meses de uma infecção hospitalar após ter sido internado por causa do diabetes. O maior presente que Zezé me deu foi ter conhecido Marinês, sua irmã mais nova, uma jovem bela e encantadora em todas as suas faces. Marinês ia sempre ao hospital, às vezes com a farda da escola, e queria não sair de lá. Dizia que passaria a noite inteira conversando comigo, porque não se cansava de estar perto de mim. De certa forma eu adorava a companhia dela. Há exatos 30 dias, Zezé sofreu o mesmo acidente de 6 anos atrás. Batera a face na cabeceira da sua cama e o resultado foi mais uma lesão na pele grosseira do rosto. Desta vez ninguém conseguiu conter o sangramento e o avanço da lesão. Zezé fora referenciada ao HGE em Salvador, onde permanecera 24 dias até sua morte, na madrugada do domingo dia 20 de junho de 2010. Durante este tempo, afirma a família, Zezé sempre perguntava por mim, por que razão eu não estava lá para curá-la. Até Dona Lindaura armou o maior barraco no hospital, comparando os colegas a um certo médico de Aracaju que, em Crisópolis, havia resolvido o problema da sua filha, enquanto que uma porção de Doutores não obtinha êxito algum. Dentro de um velório as emoções se misturam, ao enxergar Marinês, ela simplesmente largou tudo das mãos e se colocou em minha direção, em prantos, gritando: “Eu sabia que você viria, eu sabia, meu amigo. Você não iria nos deixar neste momento”. Chorando cada vez mais me abraçava e me apertava. Pude sentir suas lágrimas no meu pescoço, na minha camisa. Meu coração estava apertado, mas não chorei, precisava estar firme para poder ampará-la. Não encontrei Dona Lindaura, nem Zezé. Elas ainda não haviam chegado de Salvador. A espera foi curta, o carro da funerária apontou e Marinês desabou, não pude de imediato abraçar sua mãe, indo em seguida inclusive ajudar a arrumar o caixão de Zezé, momento em que inquiria a família sobre o ocorrido. Ah Zezé, como você estava diferente! Seu corpo envolto por uma mortalha branca sapecada do seu sangue. Evitei gravar esta imagem na memória, preferia você alegre, brincando. Fechamos o caixão deixando apenas o visor de vidro destampado, as pessoas queriam olhar pra Zezé. Ajudei um pouco a organizar a fila. Neste momento, pra minha surpresa e satisfação, veio em minha direção uma adolescente que se reportou da seguinte forma: “Você se lembra de mim? Sou aquela garotinha que me aplicaram insulina, você cuidou de mim e me salvou”. Neste momento meu coração parecia desacelerar, a alegria se misturava a tristeza de perceber minha responsabilidade para com aquela gente. Inúmeros presentes me indagaram sobre quando eu retornaria. Afirmavam a falta que fazia a todos e aí me contaram a história da busca de Zezé por mim enquanto enferma com o comentário mais difícil de digerir daquela tarde: “Se o senhor estivesse com ela, ela não teria morrido. Porque você a salvou deste mesmo problema no passado”. Onde estava o chão neste momento? Agora era eu quem precisava me apoiar. O peso da responsabilidade de tê-los cativado era imenso sobre meus ombros. Respirei fundo algumas vezes, não podia desabar. Marinês se segurava em mim como uma criança agarra o pescoço de um pai com medo de cair num precipício. Saímos em procissão, Zezé na frente, sendo empurrada pelos irmãos e o cidadão mais folclórico da cidade denominado “Xeiro” que comparecia a todos os velórios fazendo questão de guiar o carrinho do esquife. O caminho até o cemitério poderia ter sido mais curto não fosse a tradição de passarmos em frente à praça da matriz. Ao meu lado, por mim sustentada, estava Marinês, em lágrimas, mas deambulando normalmente. Dona Lindaura estava do outro lado, amparada pela primogênita, firme como uma rocha. Entendi que pra ela o melhor era ter Zezé perto de casa. As pessoas sofrem mais quando estão enfermas e longes do lar, preferem ser cuidadas na sua cidade. Cada dia, em que vivo minha profissão de médico no interior, compreendo mais e mais o porquê disso. Marinês não entrou no cemitério, pedi a Bete, minha esposa, para ficar com ela e fui ao lado de Dona Lindaura, precisava saber se ela estaria bem. E estava. “Mamãe” é firme, sólida. Estava aliviada porque Zezé finalmente estava em casa. Depois de presenciarmos todo o acabamento do jazigo de Zezé (por sinal o mesmo de seu pai), ainda ficamos conversando com alguns parentes dentro do mesmo cemitério. Ocasião em que percebi as várias faces ao meu redor, encontrei até mesmo um indigente que costumava habitar aquele local, deitado, tranquilo e observador, sobre uma das catacumbas. Alguns se dirigiram aos jazigos de seus familiares e amigos. O cemitério, apesar de ser um ambiente lúgubre, é também um lugar de paz. Lá vi revoada de pardais, silêncio e uma contradição entre dor e paz, tristeza e tranquilidade, o colorido e o cinza.
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