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domingo, 25 de julho de 2010

Mais uma história de consultório (by myself)



A doença da arranhadura do gato

Existem patologias cujos diagnósticos são explicitados no momento em que o paciente atravessa a porta do consultório e senta-se diante de nossos olhos. Isso acontece com a maioria das doenças onde o distúrbio da marcha é sugestivo desta ou daquela patologia, em certas doenças dermatológicas onde o visual diz tudo e muito mais, em algumas patologias neurológicas, enfim, em vários agravos de saúde.
Mas neste caso que pretendo contar, o simples fato de conhecer a paciente, suas crendices, suas manias e seu jeito prolixo de se comunicar, fez-me duvidar se o que estava vendo era realmente o que havia aprendido após longos anos de faculdade.

Numa trade de domingo, aparecera no consultório da urgência ambulatorial de certa cidade sergipana na qual passei três maravilhosos anos trabalhando, uma senhora simpática, bastante educada e humilde que me chamava carinhosamente de Alexi (Alesquisi), mancando com seu tornozelo esquerdo bastante inflamado, envolto em panos encardidos usados como compressas e ataduras. Pensei logo que Dona Terezinha havia se ferido e uma infecção secundária já estava reinando no local. Levantei-me para abraça-la e fui logo adiantando o diagnóstico, sem a tão necessária anamnese:
-Dona Terezinha, que novidade a Senhora por aqui (mentira, porque ela costumava ir quase todos os domingos ao hospital). Já sei, machucou-se e tá tudo inflamado, não é mesmo?
- Não, meu filho Alexi, não foi bem assim, vou lhe contar tudinho pra você entender meu sofrimento.
Pronto. Imediatamente fiz-me apenas ouvidos. E ela não perdeu tempo:
- Olha Alexi, você sabe que eu adoro gatos. Nem vou te contar (e já contando), mas, deixa eu ver, hum, acho que agora devem ter uns 20 gatinhos lá em casa. Eu gosto de todos, não vou te dizer que tenho um preferido, mas são todos meus amiguinhos, fazem muita companhia. Você sabe que eu sou sozinha.
- Já sei. Um destes gatinhos adoráveis arranhou sua perna?
- Calma que não foi bem assim, deixa eu te contar a história toda. Na semana passada, no final da tarde, era um dia tão bonito, igual ao de hoje. Você sabe que eu mesmo faço minha comida. Eu tinha deixado a janta pronta já desde cedo...
Interrompi brevemente:
-Já sei os gatos estavam brigando pela comida e a senhora tentou apartar a confusão e um deles a machucou?
- Não Alexi, não foi nada disso. Eu vou te contar. Cheguei cansada da labuta com o feijão, resolvi tomar um banho, mas antes esperei o corpo esfriar, cuidei das plantas que ficam dentro de casa e nem percebi que já estava escurecendo. Quando me lembrei de comer já era umas 7 horas, já havia passado até a Ave Maria, então resolvi me alimentar, fui à cozinha, preparar e esquentar minha comidinha, que já havia deixada pronta desde o almoço. Você sabe que eu sou muito preocupada, deixo tudo arrumadinho. Não deixo nada pra última hora.
- Os gatos também estavam com fome? Um deles arranhou sua perna pedindo comida?
- Não Alexi, não. Ouça bem. Quando fui até o fogão, lembrei-me de que havia deixado algo sobre a mesa da sala, voltei e na verdade estava era na mesa da cozinha.
- O que era, Dona Terezinha? O fósforo pra ligar o fogão?
- Não, não. Era o pratinho que eu havia separado pra por minha comidinha, depois de esquentar. Você sabe que eu gosto muito das coisas limpinhas, arrumadinhas. Quando voltei pra cozinha, liguei o fogo, esperei a comidinha ficar quentinha e já ia arrumar meu prato quando percebi que a colher que estava no fogão havia esquentado muito, quase queimei a mão.
- Já sei. A senhora derrubou rapidamente a colher no chão o que espantou os gatos e um deles arranhou sua perna. Vamos tratar então isso logo.
- Não, de jeito nenhum, não foi assim. Ouça. Eu tive que voltar pro armário onde guardo as louças e talheres todos bem limpinhos. Você sabe né, Alexi, que eu gosto de tudo arrumadinho na minha casa. Você vai ver se um dia for me fazer uma visita. Mas deixa eu te contar a história...
A esta altura, após quase 20 minutos de consulta em um ambulatório de urgência, eu já nem sabia se era mesmo o que eu estava pensando ou se aquela história de Dona Terezinha não era uma estória mirabolante vinda de sua imaginação fértil. Será que já teria de pensar num distúrbio de sua saúde mental?
- Olhe, meu filho, quando voltei do armário pra arrumar minha comidinha no prato, esqueci mais uma vez o danado do prato na mesa, voltei de novo. Você tá vendo como eu estava toda atrapalhada neste dia?
- Estou sim, Dona Terezinha, muito, mas me conte, o gato arranhou sua perna como?
- Ainda não foi assim. Quando sentei pra fazer minha janta, deixei o café no fogão, tive que voltar e pegar o café, mas primeiro peguei a xícara, quando fui botar o café nela, percebi uma sujeirinha, tive que ir lavar a xícara, enxugar e por novamente o café. Pronto, fui pra mesa e quando provei o café me lembrei de que estava amargo. Tive que voltar pra pegar o adoçante. Você sabe que eu não uso açúcar desde que você me proibiu depois daquele exame de diabetes que te mostrei e o açúcar estava um pouco alto.
- Então a Senhora, sem querer, derramou o café quente sobre o gato e ele se assustou?
- Não, de jeito nenhum, eu só fui pegar o adoçante. Foi aí que, quando sentei, um dos gatos estava bem perto da mesa e eu, sem querer...
Interrompi de novo, agora eu ia acertar.
- já sei. Nesse momento a Senhora deu uma pisada no gato sem querer e ele arranhou seu tornozelo.
- Não, meu filho, não foi assim. Quando eu me sentei não percebi que havia colocado a cadeira bem na pontinha do rabo dele que começou a espernear, eu pensava que era porque ele queria comer e dizia pra ele se calar, que colocaria ração pra todos mais tarde. Mas o gatinho ficava se batendo, se batendo e acabou “azunhando” minha perna. Foi quando eu me levantei do susto e ele saiu correndo. Pobre bichinho. Fui correndo atrás dele pra ver se ele estava bem, mas o rabinho ficou machucado e agora está tudo bem.
- Dona Terezinha, e o que a Senhora fez com seu ferimento? Tratou como?
- Bem, Alexi, eu passei vinagre e água com sal, mas como ele está com esta cara horrível, resolvi vir lhe mostrar pra ver o que você pode fazer por mim.
- Tá bom, vamos cuidar, mas lembre-se de que o diabetes não perdoa, vamos usar os remédios de forma bem correta pra gente não ter complicação.
- Não se preocupe, meu médico, virei todo domingo mostrar se ele já está bom.
Tratamos o ferimento que, após três semanas, finalmente cicatrizou. Ainda bem, porque cada visita era uma história diferente.

Conto essas histórias porque, no passado, apesar de trabalharmos em Urgência e Emergência, sempre havia tempo de ouvir e aprender mais um pouco com cada paciente. Muitos procuram justamente isso, ouvidos.  Hoje enfrentamos outra realidade, estamos cada vez mais objetivos, o número de pacientes se eleva ao quadrado a cada ano e sinto que muitos realmente não querem melhorar.

Saudades de Dona Terezinha, das suas histórias e do seu carinho. Mas nem quero imaginar quantos gatos ela tem agora.

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