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terça-feira, 3 de agosto de 2010

Mais uma de consultório (by myself)


Uma história bem comprida...

João era o nome de um paciente idoso cheio de histórias fascinantes sobre sua vida. Residente em um pequeno povoado no estado da Bahia, com seus 78 anos bem vividos ao lado de Dona Terezinha, esposa e companheira de mais de 50 anos, sempre aparecia no ambulatório apenas para o controle da pressão arterial, da qual cuidava exemplarmente.
Pois bem, numa certa manhã de quarta-feira, com céu claro e o sol desejando fazer um churrasco bem grande (rsrs), lá estávamos na pequena casa que servia de consultório improvisado para o atendimento médico e de enfermagem da nossa equipe de saúde da família tão esperada pelos moradores locais.
Lembro-me bem dos pacientes daquela comunidade, eram poucos e compareciam ao dia de atendimento como um aluno tem de comparecer ao curso de graduação. Era interessante. Todos estavam lá em todos os ambulatórios. Com raras exceções, como Dona Raimunda cuja função era a de zelar pela casa e da equipe e quase nunca solicitava receitas.
Nesta bendita e quente manhã, todos, desta vez sem exceção, apareceram. Estavam aflitos. Pensei logo que fosse por causa do calor. Como a maioria dos pacientes era de idosos fiquei logo preocupado e comecei fazendo uma pequena palestra (tipo sala de espera) sobre o calor, seus benefícios e malefícios. Entre os argumentos, as perguntas e respostas, passaram-se mais de 1 hora. O que encurtara e muito o tempo de atendimento para aquela manhã, pois à tarde necessitaríamos visitar outra comunidade.
Seu João foi o terceiro a ser atendido, ele estava triste, preocupado, como nunca o havia visto antes. Nem imaginei que sua queixa pudesse ser diferente, porque ele sempre fazia o acompanhamento do seu quadro de hipertensão arterial com excelentes resultados. Apesar da idade, Seu João era um paciente muito disciplinado.
Ao iniciarmos a consulta daquele dia, o bom homem desabafou:
- Meu amigo Dr. Alex, hoje lhe trago uma notícia não muito agradável. Eu e minha velha discutimos ontem...
Nesse momento senti-me atraído pra mais perto e sentei-me ao lado dele
- O que houve meu velho? Por que vocês brigaram?
- Alex, veja bem, essa velha está muito irritada comigo porque ontem pus umas carnes pra secar no sol e ela sempre reclamando do sal, sempre me regulando. Não sabendo ela que não era pra nosso consumo e sim pra receber uns netinhos e filhos que estão pra chegar e adoram aquela carne torradinha que a minha Terezinha sabe fazer...
Estava explicado o mal entendido
- Seu João, como o senhor está se sentindo depois de terem discutido? Mediu a pressão lá fora com a enfermeira? O que ela lhe disse?
- Ah, minha pressão está ótima, o que não está bom é meu coração. Imagine que nós nunca brigamos, meu filho, ao longo destes quase 53 anos juntos.
- Tá bom, meu velho amigo, mas antes de prosseguirmos me deixa dar uma conferida como é que as coisas estão.
Percebi que seu pulso estava acima do normal e que a pressão arterial sistólica havia se elevado.
- Seu João, o senhor realmente mediu a pressão lá fora? Mostre-me a anotação, por favor.
Realmente ele havia medido, mas estava me omitindo o resultado verdadeiro. Receava que fosse passar-lhe algum carão. (rsrs)
- Alex, escute meu filho: desde que eu briguei com minha velhinha, estou assim, mas vou ficar bem. Ela é que é resmungona, fica tagarelando o dia todo. Isso só faz piorar uma dor que tenho atrás da cabeça e caminha pros lados...
Neste momento o interrompi. Seu João nunca havia referido um sintoma como este. Na verdade ele quase nunca se queixava de alguma coisa. Aparecia somente para controle da pressão arterial
- Seu João, conte-me mais sobre essa dor, como ela começou, fale tudo...
Pra que eu fui usar essa expressão?
- Pois é Alex, vou te contar: Quando eu tinha 12 anos...
Tá vendo o que dá querer saber realmente tudo?
Seu João realmente começou a história de 66 anos atrás e discorreu tudo muito bem, associava o sintoma a uma pancada que havia levado nesta época e a inúmeros fatores de estresse e ansiedade com o trabalho na lavoura, o casamento, a criação dos filhos, netos e etc, etc, etc.
Passados 30 minutos da consulta, e nem preciso falar que os demais pacientes aguardavam ansiosos e furiosos, eis que bate à porta uma senhora franzina, delicada, amável, Dona Terezinha.
- Doutor Alex, meu filho, esse velho ainda está aí, me deixa entrar porque já tá na minha vez de me consultar com você e ele fica aí tomando seu tempo, o que ele inventou desta vez?
- Nada demais, Dona Terezinha. Seu João estava aqui me falando desta dor de cabeça que começou aos 12 anos...
Fui interrompido
- Alex, tenho certeza de que ele não lhe falou tudo não. Vou te contar a história toda desde o começo pra você ficar bem informado e cuidar direito deste velho esclerosado... (rsrs)
Imaginem agora a minha angústia. Ainda estava no terceiro paciente de uma agenda de 20. Claro que chamei nossa enfermeira e disse-lhe para reagendar os pacientes da tarde (em outro povoado) porque aquela manhã iria adentrar o por do sol.
E foi o que aconteceu, após ouvir toda a história de ambos, examiná-los e prescrever-lhes exames e medicamentos, pude finalmente passar ao quinto paciente daquela manhã, que já era tarde. Felizmente havia um pomar na residência, e uma dieta frugal é sempre saudável.
O mais interessante é que, tendo em vista a demora do casal, todos os pacientes que entravam diziam:
- Olhe Alex, como Seu João e Dona Terezinha demoraram muito aqui, você tem de ouvir minha história direitinho também, nada de pressa...
E haja ouvidos. No final do dia a missão de médico escutador de histórias estava cumprida. Meus pacientes foram pra casa satisfeitos e isso também é MEDICINA. Muitos nos procuram apenas na tentativa se serem ouvidos e tento, a cada dia, ser realmente essa mistura de médico, ouvido e coração.
Saudades dessa turminha de idosos. Recentemente soube do falecimento de Dona Terezinha e que seu João andou bastante triste, tendo morrido algumas semanas depois. Espero que eles estejam contando suas histórias juntos agora.

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