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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Aconteceu no consultório


(lembrando que nomes são trocados para proteger a imagem de meus pacientes)

Quando agente é médico uma das coisas que aprendemos nas disciplinas de psicologia e pediatria é o fenômeno da transferência. Em outras palavras, quando você serve de fortaleza e se torna exemplo pra alguém é bem provável que este se apegue e transfira sentimentos pra esta relação profissional, criando afeto ou desafeto.
E médico é assim, é visto como uma coisa do outro mundo e se agente consegue quebrar esses estigmas fica mais fácil. Eu, particularmente, nunca gostei muito de ser chamado de doutor, sempre oriento todos a me chamarem de Alex, trabalhei muitas vezes sem a mesa entre mim e o paciente, queria fazer o paciente se sentir acolhido, sentar-se ao meu lado.
Até que as coisas mudaram...

Trabalhei por 2 anos em um posto de saúde no interior da Bahia onde realizava atendimento de clínica-médica, lá eu atendia do recém nascido ao idoso. Toda a comunidade já havia criado um forte laço de amizade comigo estreitando a relação médico-paciente.
Maria era uma paciente diabética assídua, tinha 32 anos, dessas que não perdia uma consulta. Agente ficou mais próximo quando Maria perdera sua mamãe e participamos do velório, dando aquele apoio de médico-amigo à família. Depois disso Maria tinha ficado muito mais à vontade pra me contar absolutamente tudo sobre sua vida.
Nossas consultas eram sempre mais longas que as dos demais pacientes, Maria tinha a necessidade de falar e de ser ouvida. Eu entendia que, ouvindo-lhe melhor, seria mais fácil sua adesão ao tratamento, como na verdade foi. Maria fazia tudo muito certinho, seus níveis de glicemia davam inveja a qualquer paciente não diabético. Mantinha seus exames em dia e sua saúde também.
O problema é que por traz de toda essa relação de amizade, Maria estava transferindo sentimentos de afeto pra mim e isso se tornou numa paixão unilateral que estava começando a me preocupar. Toda consulta era o motivo pra ela se insinuar e deixar uma cartinha recheada de mimos e paixão. Cada carta era uma declaração de amor.
Confesso que achava tudo muito bonito, mas não podia corresponder, então me mantinha mudo sobre esse assunto, nunca comentei o teor das cartas com ela e ao perceber que ela se insinuava, mostrava-me despercebido.
Tudo ia muito bem, parecia que a situação estava sob controle. Até que a última carta deixou-me deveras preocupado, Maria ameaçava fazer coisas absurdas (nem quero relembrar). Achei melhor conversar com um amigo mais experiente e mostrar-lhe as cartas, pedir-lhe uma orientação. A conclusão foi de que seria a hora de eu realmente intervir, inverter a situação.
Na consulta agendada, Maria apareceu, tranquila como de costume, irradiando saúde. Ao finalizar o atendimento, comentei com ela sobre sua última carta e sobre seu comportamento nos últimos 4 meses. Senti que ficara nervosa, um pouco pálida – estava percebendo que não iria atingir seu objetivo. De repente, no meio da conversa (achando eu ter o controle da situação), Maria pulou sobre mim e, num ato de desespero, começou a me beijar fugazmente. Não correspondi e tentava delicadamente afastá-la de mim, até ela perceber o insucesso de sua investida.
Quando Maria caiu em si, começou a chorar e, enquanto se recompunha, dizia-me que eu estava perdendo de ter uma mulher e tanto, que eu ira me arrepender de não ter dado essa chance a ela. E saiu sem me olhar nos olhos...
Maria sumiu do ambulatório por 2 meses, fiquei preocupado, mas sempre me avisavam que ela continuava o tratamento com outro médico. Isto me deixava aliviado, ela era um exemplo de paciente, não queria que sua saúde mudasse.
E não mudou. Quando Maria resolveu voltar a se consultar comigo continuava bem, sem agravos, mais magra e esbanjando serenidade.
Confesso que ela voltou mais fria, recuada, mas isso mudou com o tempo. Aos poucos ela percebia que podia ter de mim respeito, amizade, companheirismo e dedicação de médico. Isso já bastava.
Depois disso resolvi recolocar a mesa do consultório no seu devido lugar. Mas continuo deixando meus pacientes muito à vontade.
Hoje Maria está casada, comparece ao consultório para me trazer seu filho, mas sem a assiduidade de antes.
rsrs

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